A Velhice violentada

IGREJA PRESBITERIANA INDEPENDENTE DO BRASIL

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A Velhice violentada

Inicio esta fala afirmando a minha dificuldade em usar o texto bíblico sem contextualizar. Assim sendo, farei, necessariamente, essa vinculação com a realidade, partindo de um tema que tem me melindrado muito nos últimos tempos: a velhice e as suas consequências em nossa sociedade atual e o que diz o nosso livro maior, a Bíblia, a respeito dessa temática.

Tenho ouvido, visto e lido sobre morte de velhos nesse período que vivemos. Os mortos inominados aparecem em forma de números; e os mortos mais notórios, atores, escritores, poetas, políticos etc., em forma de retalhos das suas respectivas histórias. 

Números ou panfletos das histórias, não importa, refletem um momento difícil da relação velhos e sociedade. No passado, o velho já foi simplesmente velho; depois passou a ser idoso ou sexagenário; mais recentemente se transformou em terceira idade e até “melhor idade” – definição inaceitável, tendo em vista que, nessa fase da vida, as limitações são recorrentes em consequência do envelhecimento. 

Eu confesso que prefiro ser tratado como velho mesmo. Nesse período de pandemia, o velho, como eu, passou a ser gente do grupo de risco e a não opção para uso dos restritos aparelhos respiradores dos também restritos leitos de UTI dos sucateados hospitais públicos do sistema de saúde brasileiro. 

É possível dizer que o sistema capitalista aprimorou a sua aversão ao velho. Se antes, ele era um INATIVO (aposentado), escanteado, por ter trabalhado trinta anos ou mais, e agora não ser mais do interesse do sistema econômico, neste momento, ele faz parte de uma “roleta russa” com resultado previamente determinado. Isto é, em caso de ter que escolher quem vai morrer, na disputa louca e insana por um leito de UTI, o velho ocupa esse lugar privilegiado da morte anunciada.

Vivenciar esse drama da roleta russa, onde o velho é o alvo previamente estabelecido, me fez lembrar das minhas aulas de antropologia, quando a ilustrava falando da morte entre os esquimós e o povo inuit. Nesse grupo, os mais velhos, quando muito velhos, eram levados para longe do local de habitação para morrer. Isso ocorria, segundo as narrativas, a pedido do velho, por se sentir impotente diante da vida, mas quase sempre por decisão do grupo. 

Há, nesse comportamento diante da morte, uma lógica com dois fundamentos: primeiro, para preservar a sobrevivência do grupo, que não tinha como alimentar a todos sem o devido retorno; segundo, havia o entendimento entre os inuit de que o velho que morre, ao ser comido pelos ursos – esse era o destino quase certo – a sua sabedoria retornaria à sociedade, na medida em que eles matariam o urso e, por conseguinte, usufruiriam dessa sabedoria agora incorporada à carne do animal que matou o velho.

Na nossa sociedade, a lógica é a declaração da inutilidade do velho, tendo em vista que, no capitalismo, o que importa é a produção, e esses indivíduos não mais atendem a esses preceitos da produção de riquezas. Se, no passado brasileiro, a maioria da população  morria antes de chegar à velhice, agora, mesmo que chegue a esse patamar de longevidade, a morte o ceifará em função das doenças não atendidas na rede pública de saúde ou, como no presente, por serem, essas gentes, do grupo de risco e, sobretudo, pela falta de respiradores e UTIs para todos.

Dessa forma, diante desse quadro caótico de abandono de todos, resta-nos a esperança religiosa num Deus Vivo, que atende às demandas e ao clamor do seu povo. Em Êxodo 3.7, o escritor sagrado assim se expressou: “Disse o Senhor: Certamente tenho observado a opressão e a miséria sobre meu povo no Egito; tenho ouvido seu clamor, por causa dos seus feitores, e sei o quanto estão padecendo”. 

O clamor do povo, aí incluídos homens, mulheres, jovens, crianças e velhos, por certo, atende aos anseios da sociedade brasileira no contexto atual. Todos estão apreensivos com esse contexto: as limitações do sistema de saúde brasileiro, a diminuição da renda, sobretudo entre os mais pobres, com a fome rondando as suas casas; e, nomeadamente, a loucura de um governo que incentiva o não isolamento, cristalizando a não preocupação com a morte iminente de milhares de brasileiros.

Voltando ao tema do velho em nossa sociedade, é mister ressaltar a força das medidas protetivas, por meio de louvação e de ações, tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento. Diferentemente do quadro atual, que prioriza o velho e os pobres numa lista de quem vai morrer (por falta de condições mínimas para o enfrentamento desse mal), o texto sagrado, em Levítico 19.32, afirma o seguinte: “Diante das cãs te levantarás, e honrarás a face do ancião, e temerás o teu Deus. Eu sou o Senhor.” Isto é, diante dos cabelos brancos ou grisalhos “te levantarás” “e honrarás a face do ancião”. Portanto, mesmo que o desamparo seja a tônica neste momento, o texto em epígrafe nos acalenta e nos enche de esperança. Teme ao Senhor e serás honrado dessas premissas, esse é o caminho.

Ainda no Antigo Testamento, em Provérbios 20.29, há outra afirmação similar: “A glória dos jovens é a sua força; e a beleza dos velhos são as cãs”. Percebe-se, mais uma vez, que os velhos não são tratados em função de uma lógica da produção, mas em função da experiência. Ser velho, nesse contexto da Bíblia, não significa ser listado para uma morte necessária, segundo uma lógica do mal, mas, ao contrário, se evidencia a necessidade do respeito e do reconhecimento das experiências acumuladas ao longo dos anos.

Abro, aqui, para uma ilustração daquilo que não é regra nas nossas igrejas, que, no geral, acolhe e respeita os velhos nas suas limitações, mas principalmente nas suas potencialidades. Na comunidade de que fiz parte durante décadas, na condição de professor da classe de adultos na Escola Dominical, solicitei a um idoso que orasse para o início do estudo. Ele, contudo, muito tristemente, disse que não oraria, porque o Pastor havia dito que velho não deve orar em público, como também não deve ler a Bíblia. Depois, pude confirmar essa situação lamentável, com as explicações mais abjetas possíveis daquele que definiu tal resolução.

Quero concluir essa minha inserção com a fala do apóstolo mais impetuoso dentre todos os apóstolos. O apóstolo Pedro, após a mensagem divina no Dia do Pentecostes, num dia monumental da força do Espírito Santo sobre as pessoas, afirmou, citando o Profeta Joel, ao longo da sua mensagem fabulosa – para mim a mais bonita e vibrante mensagem do Novo Testamento: “Nos últimos dias, acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne; E os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos jovens terão visões, e os vossos velhos sonharão sonhos” (At 2.17).

A grande dificuldade na vida do velho, mesmo que não seja muito velho, é a preservação, necessária e fundamental, da estabilidade física e emocional, para conquista permanente de melhoria na qualidade de vida e, assim, continuar vivendo. 

Pedro, completamente inspirado pelo Espírito Santo de Deus, encaminha ao velho uma mensagem de esperança, dizendo da possibilidade real de sonhar sonhos. Cabe àqueles que estão no entorno desses personagens da vida social, em qualquer país, em qualquer lugar e em qualquer igreja, referendar essas possibilidades de sonhar. 

Seja parceiro! 

Sonhe com os velhos!

Presb. Jonatas Silva Meneses, IPI de Socorro, Aracaju, SE

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